domingo, 20 de dezembro de 2009

6. Um Portal exotérico. A iniciação de Psique.

Contornado o jardim simbólico, depois desta imersão na filosofia do mito, encontramos no lado Sul Poente um duplo portal, em ambos os pisos, inferior e superior. Esta dupla entrada reflecte a necessidade de separar a zona de recepção, situada no piso térreo, da zona mais privada, destinada ao proprietário, José Manuel, cujo acesso independente é garantido por uma escada exterior. A primeira apresenta dez baixos-relevos assinados e datados de 1952 e uma escultura de autoria de António Paiva. A segunda é um amplo e côncavo painel de azulejos de Almada Negreiros. No meu entender, a primeira corresponde à parte exotérica da casa, enquanto a segunda dá acesso à divisão esotérica, destinada aos poucos eleitos do entourage do proprietário.


20. António Paiva, Baixos-relevos e Escultura. Portal principal da Casa. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008.

A intenção de decorar plasticamente o portal principal da Casa é visível nos desenhos do projecto de António Varela.

Em particular, confrontando os primeiros desenhos dos alçados de 1951 com as alterações de 1955, enquanto reparamos na inalterada presença das sete esculturas do conjunto decorativo da ombreira, surpreende a substituição da primordial e vaga ideia da escultura cimeira à porta por uma mais abstracta modelação zoomórfica. O arquitecto imagina, no primeiro projecto, três figuras antropomórficas com uma provável maternidade por cima do portal e, quatro anos depois, troca-as pelo ouroboros, mantendo inalterada a ideia do óculo e da janela que albergaria o vitral.


21. António Varela, Obra 23293, Processo 35792/1951, Folha 53, Arquivo Municipal de Lisboa.


22. António Varela, Obra 23293, Processo 2306/1955, Folha 11, Arquivo Municipal de Lisboa.

O escultor Virgílio Domingues recorda-se de ter assistido e participado na execução dos dez baixos-relevos que fogem, sem dúvida, à iconografia habitual do escultor. O estilo francamente geométrico destas terracotas é algo único na produção até agora encontrada do artista, que muito provavelmente correspondeu a um requisito específico de encomenda. Contrariamente à práxis da época, em que, como lembra António Duarte num artigo in memoriam de Paiva, “os artistas plásticos eram solicitados a integrar na arquitectura e espaços urbanizados as suas criações, realizadas sem dirigismo, que estes não consentiriam qualquer tutela, digo castração”, [1] o esclarecido comitente, José Manuel, terá fornecido ao escultor o motivo e o sujeito desta encomenda. Será que na sua preciosa biblioteca, infelizmente dispersa, ou na sua produção inédita, malogradamente queimada depois da sua morte, segundo o seu desejo, encontrávamos a chave da interpretação deste ciclo iniciático? O conjunto de dez baixos-relevos em barro cozido apresenta um percurso possível através da gnose pitagórica, sintetizada pelas revoluções geométricas dos arquétipos do quadrado, do triângulo, do círculo, da espiral, do pentagrama, interligados pela ideia da progressiva eclosão da luz, do 1º ao 10º grau, correspondente à gradual iluminação do iniciado.


23. António Paiva, Dez baixos-relevos. Portal principal da Casa. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008.

O número dez é sagrado para os pitagóricos. Almada Negreiros cita “os dez lugares da colecção do número” no seu escrito Ver, ligando-os à figura do Pentalfa, ou Pentagrama, ou Estrela de cinco pontas.


24. José de Almada Negreiros, Os dez lugares da colecção do número, desenho publicado em Mito-Alegoria-Símbolo: monólogo autodidacta na oficina de pintura, Livraria Sá da Costa, Lisboa, 1948, republicado em Almada Negreiros, José de, Ver, notas e prefácio de Lima de Freitas, Lisboa, Arcádia, 1982, p. 260.

As linhas do pentagrama cruzam-se em 10 pontos, desde 0 até 9. A soma dos algarismos na horizontal, que é perpendicular ao segmento que une o zero e o cinco e dele equidistante, é sempre 10.

O número cinco, em linha com o zero, ocuparia o eixo de simetria da série, dividindo-a em duas metades. Não por acaso, António Paiva desenha o Pentalfa em 5ª posição. Almada lembra que, sendo o zero contíguo de um e nove, tanto pode começar como terminar a série, tornando a colecção dos algarismos circular e potencialmente ilimitada. Utilizando um verbo a ele muito caro, Almada diz “a colecção recomeça sempre até infinito” [itálico nosso]:[2]

A teoria do eterno retorno e do eterno devir é sintetizada por António Paiva na figura zoomórfica que domina o portal, alusiva ao ouroboros, reunindo os conceitos de princípio e fim, de vida e morte, de nascença e renascença.


 25. António Paiva, Escultura. Portal principal da Casa. Fotografia©Paulo Cintra, Novembro 2008.

O símbolo da eternidade está relacionado com a roda da evolução, com o movimento e a continuidade, com a união entre o um e o todo, com a criação e a existência circular dos seres, com a união entre céu e terra, sendo a serpente animal infernal e terrestre e o círculo símbolo do mundo celeste.

Os antigos interpretavam o Ouroboros (do copto Ouro = re e do ebraico Ob = serpente), ou seja a serpente que morde a própria cauda, como a mudança do ano e o retorno ao início, mas também como princípio alquímico do fogo.[3]


26. Símbolo alquímico da serpente Ouroboros in Antigo Manuscripto Grego, Bridgeman Art Library Ltd. v. Corel Corporation.

Não por acaso o proprietário, José Manuel, autor do texto A Alquimia do sonho, 1951 não só explora o tema do eterno fluir do tempo
Há qualquer cousa de profundamente doloroso na consciência. Tudo flui, tudo se perde irremediàvelmente… A única eternidade do homem é a plena vivência do instante, comunhão com tudo, indiscriminadamente, em contemplação e humildade, em aceitação e dádiva.[4]
mas também põe como nume tutelar da sua casa a serpente, o animal alquímico capaz de se devorar a si mesmo, tal como “o fogo que se alimenta com o fogo […] o fogo que consome tudo, que abre e fecha todas as coisas”.[5] Por isso a serpente é alter-ego da porta, tal como lembra o proprietário da Casa num seu escrito de 1964:
A cobra: desde o princípio do mundo amaldiçoada rasteja de porta em porta à procura de quê? de um perdão? de uma esmola? talvez de nada de resto quem a conhece? quem a vê?[6]
Aparentemente naïf, este Bestiário, esconde uma mensagem profunda, invisível ao profano, mas evidente para quem procure uma exegese crítica do texto. Ligado às origens e ao pecado, o pobre animal é associado à porta e à invisibilidade. Neste “quem a vê ?” é legível um apelo aos iniciados que conseguem ver além das formas, da natureza, do quotidiano, tal como lembra o poeta na epígrafe do mesmo texto:
"Rien ne me parait plus surprennent que le banal; le surréel est là, à la portée de la main, dans le bavardage de tous les jours." Eugène Ionesco[7]
Premissa necessária para o Neófito que queira ultrapassar a ombreira da porta do Conhecimento Superior é a clarividência, ou seja não só a capacidade de ver claramente, de ante-ver, mas também de possuir a segunda vista, na qual falava Swedenborg,[8] para descortinar os misteriosos significados que as aparências encobrem. Indicativa dum contexto iniciático, como o da casa, preanunciado pela entrada a xadrez, é esta associação entre a porta e o infinito. Se o Conhecimento Superior permite a transição entre dois mundos, desde as trevas até a luz, é significativo que até mesmo no elemento da porta, verdadeiro diafragma entre estas duas esferas, se apresentem os emblemas do infinito.

Mais ainda. Na minha opinião, na escultura adossada de António Paiva, por detrás do símbolo do ouroboros, estão os emblemas do Ómega[9] e do Alfa sobrepostos: o Ómega por baixo e o Alfa por cima. Trata-se das duas letras justapostas: o corpo da serpente descreve o Alfa em posição vertical, por detrás dum suporte em jeito de Ómega. Deste jogo entre o zoomórfico e o cifrado, resultaria um tríplice emblema, Alfa-Ouroboros-Ómega, a sublinhar, por um lado, o início e o fim de Tudo e de todos os Tempos (Alfa-Ómega) e, por outro, a continuação dos Tempos no eterno recomeço até Infinito (Ouroboros). Isso condiz com a interpretação unitária da Casa como união dos opostos, num contexto dedicado a Psique. Uma reverberação acústica desta interpretação ler-se-á nas poesias de José Manuel:
Serás o início e o fim
De todos os momentos
A primeira e a última
De todas as mulheres[10]
Depois o príncipe encontrou a sua alma e amou-a tanto tanto tanto que deu a sua vida por ela.
E nesse mesmo instante reconheceu-a e descobriu o seu mistério
A sua alma era também a sua morte.[11]
Psique coincide com o início e com o fim, remetendo simultaneamente para a circularidade infinita dos Tempos. De facto, segundo a doutrina órfico-pitagórica, Psique, ou seja a Alma, cumpre uma viagem (Metempsicose), transmigrando depois da morte para outro corpo.

Observando o desenho do alçado Noroeste de 1955 de António Varela, reparamos numa vontade de redução do símbolo zoomórfico à geometria triangular dum Delta.


27. António Varela, Obra 23293, Processo 2306/1955, Folha 11, Arquivo Municipal de Lisboa.

O Delta é na realidade uma tétrakis. Pitágoras e os seus estudantes prestavam juramento sobre esta figura, baseada no número quatro.

28. Tétrakis pitagórica

Como se vê, cada lado do triângulo equilátero tem quatro pontos. No vértice está o número 1. A tétrakis representa o número dez, soma dos primeiros quatro números naturais, 1+2+3+4, dispostos em pirâmide ou Delta. O número 10 exprime a multiplicação dos seres e das formas criadas e o retorno à Unidade, através da reintegração no Fogo primordial, no Espírito Criador.
Se na sequência numérico-geométrica das dez terracotas está didáctica e analiticamente explicitado o caminho do iniciado, no ouroboros, cimeiro do portal, encontramos a síntese geométrica e filosófica desta viagem. O portal parece-nos a metáfora implícita do percurso por parte do Neófito que, em frente às portas do saber, é chamado a meditar no contínuo começo ou re-começo, onde a cabeça e a cauda, o alfa e ómega, o 1 e o 10 se sobrepõem, contemplando os vários graus de iluminação, exemplificados nos baixos-relevos.

[1] António Duarte, Escultor António Paiva, in Belas-Artes Revista e Boletim da Academia Nacional de Belas-Artes, Lisboa 1986 a 1988, 3ª série, nº 8 a 10 (especial comemorações), p. 165.
[2] José de Almada Negreiros, Mito-Alegoria-Símbolo: monólogo autodidacta na oficina de pintura, Livraria Sá da Costa, Lisboa, 1948, republicado em José de Almada Negreiros, Ver, notas e prefácio de Lima de Freitas, op. cit., p. 260 [itálico nosso].
[3] Roob Alexander, Il Museo Ermetico, Alchimia & Mistica, Tachen, Köln, 1997, pp. 402-403 e 421.
[4] José Manuel, Alquimia do sonho, op. cit., p. 33.
[5] Abraham Eleazar, “Uractes chymisches werk”, Leipzig, 1760, in “Alquimia & Misticismo”, Alexander Roob, Taschen, Lisboa, 1997, p. 403.
[6] José Manuel, Bestiário, Lisboa, Tipografia Ideal, 1964, n. 7.
[7] Idem.
[8] Emanuel Swedenborg, cientista, filósofo, teólogo, inventor, político, literato, espiritualista sueco do século XVII-XVIII, descreveu a Ciência das Correspondências na obra Arcana Cœlestia, entre 1746 e 1747.
[9] Devo ao arquitecto Hugo Nazareth Fernandes e a uma troca de opiniões num café à tarde a intuição de que a escultura simulasse um Ómega.
[10] José Manuel, Eros, in Eros, revista literária fundada e dirigida por José Manuel, nº. 1 (Abril 1951) - nº 15 (Dezembro 1958), I, 17.
[11] José Manuel, Uma história triste, in Eros VIII (Fevereiro 1955), op. cit.

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